17 de junho de 2019
ARTIGOS

O Brasil se moveu

A máxima da tese darwinista na capacidade de adaptação das espécies se aplica às leis do discurso (e da semântica). Sujeitos da história, não importa se de carne e osso, papel ou ‘confrarias’, mudam suas posições ideológicas ao sabor do vento.

Estamos diante de um espetáculo de readaptações neste preciso momento e neste preciso país.

Com o aniquilamento de Moro e Dallagnol, articulistas, formadores de opinião (sic), veículos de comunicação e congêneres dão início a processos de realinhamento.

O alerta aqui proposto é trivial: eles se realinham não para se redimirem, mas para sobreviverem.

É o darwinismo ideológico.

Neste habitat semântico há, no entanto, nuances que o próprio darwinismo talvez não tenha tido tempo de enunciar.

E neste ponto epistemológico, o marxismo ajuda.

Para Marx e na sutileza da paráfrase, os sujeitos são empurrados pela história, que definiria através de ‘ondas’ massivas o comportamento e o posicionamento dos indivíduos diante da engrenagem do trabalho e da organização social.

O que costuma-se apagar em Marx, no entanto, é a sequência deste argumento: a que postula um sujeito capaz de modificar as ondas da história.

Produto da própria história, o sujeito poderia ‘desgarrar-se’ de sua lógica fatalista e ‘empurrar’ essa mesma história para outro ‘lugar’, afinal, ele é uma ramificação dessa história – e, portanto, um depositário deste poder massivo de mudar a si mesmo (Lula é um desses raros sujeitos).

O darwinismo, que quando ‘transplantado’ para o universo simbólico redunda sempre em percepções autofágicas e suicidas (o darwinismo social), em seu próprio compêndio epistemológico abarcou as espécies mais ‘fortes’ que ‘impuseram’ suas características físicas para se perpetuarem na fauna social da experiência biológica.

O bico do tentilhão se adapta ao regime alimentar e ao habitat disponível e um tentilhão que ‘encurta’ o bico para comer sementes não é moralmente inferior ao tentilhão que prospecta insetos com seu bico longo nos sulcos arbóreos.

Ambos buscam sobreviver de acordo com a ‘história’ das ofertas alimentares disponíveis, regidas por mudanças climáticas e geológicas.

Com o discurso político e social na espécie humana, ocorre a mesma coisa. Não há, concretamente, possibilidade de cálculos de racionalidade clássica (lógica) com movimentos massivos de discurso (de ideologia).

Quem buscar analisar esses deslocamentos com a ferramenta do racionalismo – e todas as suas vertentes apócrifas – cai na espiral da mesma irracionalidade que rege os movimentos que busca identificar, em um processo ad hoc.

Em língua de gente: realinhamentos massivos de discurso não podem ser explicados com a lente rudimentar dos princípios lógicos, motivados pelas pressões políticas (semânticas) de turno.

Ora, cara-pálida, mas o que afinal o vosso ímpeto dominical-analítico quer dizer com tudo isso?

Que o Brasil se moveu.

Estamos em um furioso e acelerado movimento de readaptação social e ideológica.

O cataclisma Lava-Jato produziu esse cenário, com sua tentativa de burlar o sistema ‘predatório’ embutido na política brasileira pós redemocratização.

A operação-conspiração poderia ter levado a melhor, como levou por intermináveis quatro anos, parindo o estupor de bestialidade chamado Bolsonaro.

Mas os tempos ‘geológicos’ da tecnologia e do gerenciamento de sentidos são outros e uma certa verdade veio à tona antes da hora prevista pelos tradicionais deslocamentos históricos, tão desacelerados quanto irresistíveis e desinteressados.

A busca pela sobrevivência e pela perpetuação neste momento é acelerada, um verdadeiro espetáculo se se deixar de lado as paixões de turno e o sentimento de vingança, tão natural quanto libidinal.

Em outras palavras, meigos leitores, a Globo corre para não ser devorada e extinta, a Veja busca seu realinhamento desesperado, a Folha de S. Paulo soluça escondendo o choro e o Estadão se segura nas tamancas, chocado com aquela verdade que sempre soube existir: a de que Moro e Dallagnol são dois almofadinhas sem caráter que dilapidaram o futuro de uma nação inteira por inveja, ódio e preconceito de classe.

A rigor e ‘amarrando’ a pensata: os diversos espécimes políticos e empresariais se movem para garantir a sobrevivência – e continuarão se movendo, tão logo se supere o trauma lavajatista.

Houve, no Brasil, um movimento artificial de ‘retenção da história’, que não poderia perdurar por muito tempo.

Agora, temos a ‘dispersão’, termo caro a Foucault e propício ao estilhaçamento de narrativas que aponta no horizonte.

Como nos movimentos da semiótica tensiva, esse acúmulo gigantesco de energia simbólica (política) represada pode ser comparado a um arco e uma flecha: uma fibra retorcida e retesada esticada em seu máximo tensionamento, pronta para disparar a seta dos realinhamentos estratégicos somada a uma nova ‘leva’ de desafios semânticos para ser reciclada ao sabor dos protagonistas reais da história.

Traduzindo mais uma vez essa minha insensata mania de metaforizar até a mãe: o Brasil dará início a um novo ciclo social, de reconstrução e restauração.

Foram abertos espaços, caros leitores, imensos para preenchimento de novas ações políticas e novas concepções de mundo.

O Brasil está pronto para vibrar mais uma vez, para sentir o tesão que é lidar com novas possibilidades, com o sonho, com a superação.

A análise ‘desinteressada’, impregnada da técnica darwinista e marxista de observação de fenômenos, em última análise, simbólicos, dar-se-á sem que nenhum de nós possamos ‘reagir’.

Mas o potencial explosivo e político dessa leitura já ‘estala’ como energia político-subjetiva no horizonte da re-significação de país.

Depois da devastação, a efervescência.

O Brasil está prestes a ‘ferver’ culturalmente mais uma vez. A economia, espancada há 4 anos por gente notadamente incompetente e limitada, também grita por socorro – e, ao fundo desse grito, pode-se ouvir o sintagma ‘Lula Livre’, livre para, rejuvenescido, organizar o país que aprendeu a amar como a sua própria família e a sua própria autoestima, insuportável para nossa elite sem caráter.

Os tentilhões que habitam o topo da nossa pirâmide começam a debandar em revoada, buscando abrigo nas reentrâncias da cultura (o humor, a literatura, o ensaio).

Lagartos e jararacas começam mais uma vez a subir impávidos e sedentos essa mesma pirâmide.

Se tiver tentilhão que desaprendeu a voar, nós agradecemos.

Bom apetite.

GUSTAVO CONDE
Gustavo Conde é mestre em linguística pela Unicamp, colunista do 247 e apresentador do Programa Pocket Show da Resistência Democrática pela TV 247.

Por Brasil 247

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