Bolsonaro age para sufocar agricultura familiar e pequenos produtores
O País caminha agora, sob o comando do Palácio do Planalto e da bancada ruralista, para se transformar em uma imensa fazenda de exportação
Cada vez mais desindustrializado, o Brasil está também à beira de um avanço sem precedentes da grande propriedade rural e da agricultura voltada para a exportação à custa do esmagamento da pequena propriedade, da agricultura familiar destinada à produção de alimentos para o mercado interno, da reforma agrária e dos movimentos dos sem-terra, tudo acompanhado de ameaças reais ao meio ambiente. O pacote de maldades está embalado em grande parte na Medida Provisória 910, da regularização fundiária, assinada na terça-feira 10 por Jair Bolsonaro, e um conjunto de leis e decretos editados desde o impeachment de Dilma Rousseff em 2016. O País caminha agora, sob o comando do Palácio do Planalto e da bancada ruralista, para se transformar em uma imensa fazenda voltada de modo quase exclusivo para a exportação, concordam técnicos, economistas e políticos.
“As mudanças feitas por meio da MP 910 ampliam e flexibilizam a regularização fundiária e dão maior concretude a duas grandes demandas estratégicas dos ruralistas contempladas pela lei. A primeira é facilitar e agilizar a transferência, para o mercado, do estoque de 88 milhões de hectares das terras da reforma agrária, que são públicas. A segunda é ‘passar a régua’ nas ocupações de terras da União, até o limite de 2,5 mil hectares, em todo o País, conforme definido pela Lei nº 13.465, pelo processo de autodeclaração de ocupações com áreas equivalentes a até 15 módulos fiscais”, resume o engenheiro agrônomo Gerson Teixeira, assessor parlamentar do PT na Câmara dos Deputados.
A ampliação de 4 para 15 módulos fiscais da extensão dos imóveis passíveis de legalização por simples autodeclaração dos requerentes significa que esse tipo de regularização, antes limitada a pequenas propriedades de até 440 hectares, agora é possível para áreas de até 1,5 mil hectares. O maior alcance das medidas se dará no território da Amazônia Legal, onde, ao legitimar terras ocupadas, tendem a prover segurança jurídica em relação à posse.
A Medida Provisória da regularização fundiária tende a intensificar o conflito agrário no País
E o que vai acontecer? “O proprietário pode dizer: esta terra é minha, e, como não há necessidade de comprovação de posse, ele pode se sobrepor a outras demandas no mesmo local, de áreas para demarcação indígena, de quilombolas, ou ainda de assentamentos. Ele, inclusive, pode declarar que é dele uma área com um acampamento de sem-terra. Imagine a situação explosiva no campo em relação à sobreposição, o conflito de interesses em uma mesma propriedade. Isso, somado à política de flexibilização do uso de armas no campo, nos faz temer que possa acontecer até um aumento de assassinatos no campo. É muito grave”, denuncia Kelli Mafort, da coordenação nacional do Movimento Sem Terra e doutora em Ciências Sociais pela Unesp. O MST reúne 450 mil das mais de 1 milhão de famílias assentadas no País e tem controle territorial de um total de 8 milhões de hectares de terras públicas.
A MP aumenta de maneira indevida e desmesurada o poder do latifúndio e isso asfixia as pequenas propriedades da agricultura familiar. “Eles utilizam uma prerrogativa do pequeno produtor e estendem, vão ampliando”, aponta Aristides Veras, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. “A ampliação do tamanho da propriedade passível de regularização só por autodeclaração é um problema. Fazer sem vistoria prévia é risco, inclusive, de deixar passar fazendas com situação análoga ao trabalho escravo, prática não encontrada nas pequenas propriedades. O Estado não pode abrir mão da vistoria, pois ninguém vai autodeclarar-se que escraviza alguém. Para piorar, suprimiram da lei o item que veta a regularização quando há a mencionada exploração de mão de obra em condição análoga ao trabalho escravo. A Contag apresentou ao Congresso emendas a essa Medida Provisória para corrigir esses e outros pontos”, afirma Veras.
A deputada Maria Perpétua de Almeida, do PCdoB do Acre, diz que a Medida Provisória regulariza até 2014. “Há, entretanto, muitas invasões mais recentes”, afirma. “Não estou me referindo às realizadas por pobres, porque, quando elas tomam a menor iniciativa nesse sentido, a polícia chega e a Justiça manda retirar, mas às cometidas por aqueles mais espertos, os grileiros, que contratam gente e vão para cima. Se o governo queria mesmo resolver o problema e regularizar, por que não começar por terras improdutivas? Por que não chama os movimentos organizados dos sem-terra e dos sem-teto que há anos lutam pela regularização dos locais em que vivem? Porque, da forma como está fazendo, premia o grileiro, aquele que invadiu ou incentivou a invasão. Acho muito perigoso isso. O governo Bolsonaro, se tiver mais três anos pela frente, e se até o fim dele ocorrerem mais invasões, aí ele vai premiar de novo?”
Gerson Teixeira concorda: “A extensão da data de corte das ocupações habilitadas ao programa de regularização, anterior à posição de 22 de julho de 2008 para 5 de maio de 2014, representa um estímulo objetivo à continuidade da grilagem das terras da União. Bastará uma ‘forcinha’ por parte da bancada ruralista, o que nem é necessário no atual governo, para que em pouco tempo outro ato passe a reconhecer a ‘legitimidade’ das ocupações ainda mais recentes”.
“As medidas são um plano de entrega de terras públicas para proprietários muito ricos”, diz Kelli Mafort, do MST
A mudança que ocorre na reforma agrária é dramática, prossegue Teixeira. Primeiro, conta o especialista, o governo manda emancipar, sair da tutela do Estado, os assentamentos que completaram 15 anos em 2017. Com isso, milhões de hectares vão para o mercado, pois a maior parte jamais recebeu um crédito de instalação, não tem infraestrutura, os agricultores que lá estão não têm a menor condição de mantê-los. O objetivo seria atender a uma demanda dos ruralistas, de privatizar os domínios. Não só. Existem dois instrumentos na reforma agrária para ceder a terra, um deles é o título definitivo, o outro é a concessão do direito real de uso. Neste caso, ele usufrui da área pelo resto da vida, passa aos descendentes, tem acesso ao crédito, mas permanece como bem público e ele não pode vender. Essa alternativa o governo eliminou, transformou tudo em título definitivo. Com título definitivo é possível comercializar.
“É a contrarreforma agrária”, destaca o assessor parlamentar. “Quase todos os assentamentos têm 15 anos e mais de 90% deles irão agora para o mercado. Atende a uma grande demanda da bancada ruralista, desde muito tempo atrás, pelas áreas públicas da reforma agrária, por redução das terras indígenas e pelo fim das unidades de conservação. Eles querem terra, sempre mais terra.”
Além disso, o governo e os latifundiários tentam acertar um golpe fatal no MST com a mudança dos critérios de pontuação para selecionar os beneficiários da reforma agrária. O sistema de pontos corresponde a vários critérios, entre eles quem mora no assentamento e se tem família mais numerosa. Um dos requisitos que pontuavam era estar acampado no local. Os sem-terra nessa condição praticamente desapareceram nas novas regras de pontuação. Esta foi a forma encontrada para banir da reforma agrária aqueles que estão na luta pela terra organizada pelo MST e outros movimentos, que perderão pontos e não terão acesso a propriedades. Um sonho para os latifundiários.
Fonte: CartaCapital