2 de outubro de 2019
ARTIGOS

Democracia participativa e soberania popular

Patrus Ananias de Souza

Governos municipais, liderados pelo Partido dos Trabalhadores, vivenciaram nos anos 1980 e 1990 importantes experiências através do orçamento participativo. As populações locais decidiam em encontros e assembleias populares as obras a serem realizadas e as políticas públicas a serem implementadas, considerando os recursos disponíveis. Estes debates e decisões eram acompanhados por agentes da prefeitura que passavam as informações necessárias referentes a questões técnicas sobre as obras, aspectos orçamentários, jurídicos.

O orçamento participativo partia de algumas premissas políticas, sociais e econômicas. Os recursos públicos, considerados à luz das demandas, carências e necessidades, são sempre escassos. O Brasil acumulou ao longo de sua história, e infelizmente voltou nos últimos anos a acumular de forma assustadora, uma enorme dívida social que se manifesta nas desigualdades sociais e regionais e na carência dos serviços públicos fundamentais – educação, saúde, segurança pública, cultura, saneamento básico, moradia digna, trabalho decente, espaços públicos convivenciais e possibilitadores de atividades esportivas, lúdicas e culturais. Cumpre então estabelecer as prioridades. Não é possível fazer tudo de uma vez.

As pessoas, famílias e comunidades conhecem bem as realidades em que vivem nas cidades e, especialmente, nas suas áreas periféricas e marginalizadas, nos distritos, nas áreas rurais, nos territórios indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, nas áreas de conflitos. Eles bem sabem de suas reais necessidades.

Belo Horizonte viveu, sob a nossa administração, essa esplêndida experiência. Como prefeito pude acompanhá-la diretamente. As conversas sobre as prioridades começavam nos bairros, vilas, favelas, conjuntos, abertas às pessoas, mas com uma atenção especial às lideranças e militantes dos movimentos sociais, associações de moradores, grupos de jovens, organizações esportivas e culturais. Os encontros se ampliavam nas regionais e destes para as assembleias municipais. As prioridades iam sendo progressiva e democraticamente definidas nesses encontros, com visitas de representantes das comunidades aos locais onde eram reivindicadas as obras e as políticas públicas.

Vivi então experiências inesquecíveis: comunidades pobres abdicando de reivindicações absolutamente legítimas, necessárias, urgentes em benefício de comunidades onde as demandas eram ainda mais necessárias e urgentes. A experiência viva da solidariedade. Vi as comunidades alargando as suas reivindicações, partindo dos problemas mais próximos – o buraco e o calçamento de sua rua, o ponto de ônibus, a ponte de acesso -, ampliando o seu olhar e buscando soluções para questões maiores onde, muitas vezes, os problemas mais específicos estavam incluídos. É a abertura para o desafio coletivo, o bem comum, o desenvolvimento da comunidade.

Muitos, que não querem romper com os velhos modelos de dominação ainda que usando de linguagens pretensamente modernizantes, procuram vincular a democracia participativa e o orçamento participativo ao democratismo e, assim, à ineficiência, a uma pretensa desordem onde todos falam e ninguém faz. Não foi o que vivemos em Belo Horizonte e em muitas cidades do Brasil e outros países que adotaram esse modo de governar democrático, aberto e participativo.

A democracia participativa trabalha com regras, procedimentos, prazos, transparência. É um instrumento eficaz, muito provavelmente o mais eficaz no combate à corrupção e desperdício inaceitável do dinheiro público. A população passa a ter acesso aos recursos públicos – de onde vêm e onde devem ser aplicados: as populações e comunidades, através de seus representantes eleitos, passam a acompanhar a execução das obras e das políticas públicas. Como estão diretamente interessadas nas suas realizações, na sua qualidade e implementação dentro dos prazos estabelecidos, tornam-se ótimos fiscais e agentes operosos no combate à burocracia e à corrupção.

O orçamento participativo, dentro da perspectiva mais ampla da democracia participativa, torna-se uma escola da cidadania e da soberania popular. As pessoas desenvolvem suas percepções políticas tornando-se progressivamente sujeitos no contexto das relações humanas e dos conflitos sociais e econômicos. Este parece-me um ponto fundamental: vivemos em sociedades conflitivas. Há uma disputa pelos recursos e bens públicos, pelo dinheiro público. Os interesses econômicos mais poderosos não descansam na busca permanente para privatizar e por a seu serviço o patrimônio público.

Os donos do poder querem súditos, nós queremos o pleno exercício dos direitos e deveres da cidadania e da soberania que pertence ao povo. Queremos pessoas conscientes que, além de defender, vivam efetivamente os valores democráticos.

A boa experiência do orçamento participativo não se ampliou na perspectiva do planejamento participativo. Além da lei orçamentária a participação efetiva da sociedade deve se estender aos planos plurianuais, às leis de diretrizes orçamentárias, aos planejamentos regionais e setoriais. Não avançamos nessa perspectiva. Tampouco foi o orçamento participativo acolhido nas esferas estadual e nacional.

Mesmo no plano municipal houve um lamentável retrocesso. Algumas gestões municipais do campo democrático popular mantiveram o ideário do Orçamento Participativo. Consciente ou inconscientemente começaram a miná-lo através das redes socais que passaram a substituir as reuniões, os encontros, as plenárias, as assembleias. A democracia participativa pressupõe o encontro das pessoas, o diálogo, o debate, a exposição clara das reivindicações e das diferenças, a construção de consensos, de possibilidades compartilhadas. Só assim são possíveis as manifestações de solidariedade que mencionei.

Tivemos nos planos municipal, estadual e nacional, é importante ressaltar, os avanços, que se inserem também no campo da democracia participativa, das conferências e dos conselhos setoriais – educação, saúde, cultura, assistência social, segurança alimentar, moradia; povos e comunidades tradicionais, mulheres, crianças e adolescentes, idosos, comunidade LGBT. No atual governo, de tantos e tão lamentáveis retrocessos, as conferências, os conselhos, a interlocução com os movimentos sociais e populares, o respeito às manifestações que se fazem em nome da paz, estão sendo duramente quebrados e reprimidos.

Vivemos, salta aos olhos, uma crise profunda da democracia representativa. Sobre este fenômeno histórico cabe uma elaboração mais profunda que foge aos objetivos e ao tema deste nosso encontro. Algumas realidades se explicitam: o uso abusivo do poder econômico; o papel crescente das redes sociais utilizadas e manipuladas sem limites éticos; o lugar deificado do mercado que se torna a voz suprema e supre as instâncias políticas e as construções democráticas. A representação política se esvai.

A História nos ensina que as ditaduras – sejam elas abertas ou dissimuladas e aqui é preciso realçar a ditadura do dinheiro, do poder econômico, a ditadura ideológica que perpassa a propaganda, o consumismo e poderosos meios de comunicação – as ditaduras não abrem portas e possibilidades. Além das perversidades – prisões arbitrárias, perseguições mesquinhas, tortura, assassinatos; censura aos meios de comunicação, à cultura, às artes, às manifestações do pensamento e da criatividade, – as ditaduras impedem o exercício da cidadania e da soberania. Tornam as pessoas mais encolhidas nas suas possibilidades reflexivas e convivenciais.

Em face da perversidade e dos retrocessos históricos e civilizatórios que caracterizam as ditaduras, o caminho é buscar o aperfeiçoamento da democracia para que ele se torne efetivamente o governo do povo. A democracia participativa com o planejamento e o orçamento participativos é, a nosso ver, o caminho que abre novos espaços e possibilidades à democracia.

A democracia direta aporta a sua contribuição através das iniciativas populares de lei, dos plebiscitos e referendos, assim como devemos buscar caminhos para o aperfeiçoamento dos procedimentos políticos e eleitorais da democracia representativa. Penso não haver incompatibilidade entre esses diferentes modelos de democracia e que eles podem coexistir e se aperfeiçoarem conjuntamente.

Vejo, todavia, a democracia participativa como um sinal dos tempos e uma força particularmente nova e anunciadora. Estabelece um novo paradigma de governo e mesmo de estado superando as heranças seculares do absolutismo, de um modelo democrático que na melhor das hipóteses, é fazer para e não fazer com, que não aposta na emancipação das pessoas.

Pessoas bem-intencionadas e comprometidas com a ampliação das possibilidades da vida coletiva perguntam sobre a viabilidade dos procedimentos participativos nos estados e, sobretudo, no Brasil, considerando a extensão territorial e a distância que separa os núcleos populacionais. Como, em face desses fatores geográficos, reunir as pessoas para discutir os orçamentos públicos e as questões de interesse coletivo?

Aqui entra a questão regional e/ou territorial, essencial para melhor compreendermos o Brasil e para superarmos o desafio das distâncias na implementação da democracia participativa.

Parece-me inquestionável que, na perspectiva do projeto nacional brasileiro, não podemos perder de vista a amplitude e a integridade territorial do país. Mas dentro de uma visão integrada do Brasil emergem, sem quebra de nosso bem maior que é a unidade nacional, as diferenças regionais que compõem a nossa unidade múltipla.

O nosso país compõe-se de diferentes regiões ou territórios com características históricas, geográficas, econômicas, culturais e ambientais comuns. São áreas que facilitam, internamente, a comunicação, o transporte, o comércio, a integração. Essas áreas se configuram em territórios maiores (a Amazônia, o Semiárido Nordestino ou a região do Polígono das Secas); territórios médios (Pantanal Mato-grossense, Vale do Rio São Francisco e outros vales que formam regiões diferenciadas e bacias hidrográficas); e regiões menores que se dividem e subdividem dentro dos estados.

A construção de procedimentos de participação popular pressupõe territórios menores que facilitem a comunicação entre os municípios, as comunidades, as organizações, os movimentos sociais, o encontro das pessoas.

Sei de, pelo menos, dois estados bem divididos territorialmente para fins administrativos: Minas Gerais e Bahia. Minas, o Rio Grande do Sul e estados do Nordeste têm territórios que, além de bem estudados técnica e cientificamente, foram bem identificados pela cultura e pelas artes, especialmente a literatura e a música.

Temos outras referências territoriais, como as regiões metropolitanas e aglomerados urbanos, os territórios da cidadania instituídos no governo do presidente Lula, os consórcios intermunicipais e regiões menores definidas pelos próprios moradores e por características ambientais muito próprias, como as nossas serras do Cipó e da Canastra.

Ao falarmos desse tema, não podemos esquecer as experiências históricas seculares dos territórios indígenas, quilombolas, populações e comunidades tradicionais.

Na perspectiva da democracia participativa, a delimitação dos territórios deve se dar considerando as experiências e as características regionais comuns, mas procurando sempre, na configuração dos espaços territoriais, consolidar e ampliar a participação das pessoas, grupos, comunidades, igrejas, entidades sindicais de empresários e trabalhadores, movimentos sociais, escolas, universidades presentes e atuantes na região.

O ponto de partida deve se dar a partir dos territórios que já desenvolveram formas internas de comunicação e desenvolvimento regional.

Embora o objetivo da democracia participativa seja ampliar ao máximo as condições para que as pessoas possam se manifestar e exercer a sua cidadania, seguramente não partiremos de grandes assembleias populares, para as quais devemos caminhar. Penso que os primeiros passos devem ser dados com a participação das lideranças políticas locais (prefeitos, vereadores, gestores), representantes das entidades e movimentos que tenham presença efetiva na região. É fundamental a adesão do governo federal e dos governos estaduais na busca de ações suprapartidárias, republicanas, voltadas para o bem comum, como bem orienta e determina a Constituição da República ainda vigente, apesar dos golpes que tem recebido. Nessa perspectiva devem estar presentes e bem comprometidos os órgãos estatais, as fundações e empresas públicas que desenvolvem ações e políticas públicas nas regiões.

Muito provavelmente essas instâncias participativas e democráticas não terão, nos primeiros momentos, o caráter deliberativo, objetivo maior a ser buscado. Mas também não devem ser meramente consultivas. Devem ser espaços de interlocução e deliberação compartilhada sobre as prioridades regionais. As decisões de cada região ou território deverão ser posteriormente ajustadas às outras decisões regionais e setoriais, às prioridades nacionais.

Além de assegurar progressivamente o exercício da soberania popular, a participação da sociedade nas políticas de desenvolvimento regional pode e deve se constituir em espaços fundamentais para a execução, integrada e transversal, das políticas públicas setoriais. Isso significa maximizar os recursos financeiros, tecnológicos e humanos; criar sinergias entre os diferentes órgãos e atores. Implica articular as ações governamentais entre os entes federados e destes com a sociedade, condição primeira para a boa execução das políticas públicas. Todos sabemos, por exemplo, da importância da educação para o desenvolvimento das pessoas e das nações. Mas a criança, o jovem, a pessoa, enfim – porque a educação deve ser para todos e em todas as épocas da vida – não aprende se não estiver bem de saúde. Esta, por sua vez, pressupõe alimentação saudável, água potável, saneamento básico, moradia decente, meio ambiente saudável.

As escolas e universidades presentes na região devem acolher nos seus currículos os desafios e as potencialidades locais e regionais, para formar pessoas que possam contribuir para o desenvolvimento territorial através da pesquisa e do conhecimento aplicados às realidades regionais, estimulando o desenvolvimento da agropecuária – sempre na perspectiva da agroecologia -, da indústria, do comércio, das artes, da cultura, do cooperativismo, da economia solidária.

Aprendemos, com as lições da história, que todas as conquistas e avanços civilizatórios levam a novas encruzilhadas e desafios. As prioridades regionais podem exigir políticas públicas mais alargadas, obras de infraestrutura, equipamentos que transcendem os limites territoriais, exigindo novas instâncias de reflexão e deliberação, como hoje os conselhos e conferências setoriais estão a exigir novos instrumentos de complementação e transversalidade.

São esses novos desafios e possibilidades, novos horizontes que se abrem à convivência humana, que devem mobilizar, tocar os nossos corações e as nossas consciências para que nos coloquemos a serviço do bem maior: tornarmos melhor, mais saudável, mais amorosa e solidária a aventura humana sobre a face da Terra. Comecemos pelos nossos territórios, nossas regiões e o nosso território maior: esta grande e querida pátria brasileira.

*Aula Inaugural da disciplina Cartografia do Orçamento Participativo de Belo Horizonte – Escola de Arquitetura – UFMG – 09.09.2019

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